Comitê de ética: desestímulo à pesquisa ou censura prévia?

Comitê de ética

Darci Secchi

Juro que estou abespinhado com os rumos impressos ao Comitê de Ética recentemente instituído na UFMT. Tenho-o com o mais recente instrumento de desestímulo à pesquisa, de cerceamento à liberdade de cátedra e de censura prévia às temáticas desafetas às eminências e à burocracia irracional.

E notem: não sou um pesquisador contundente ou abusado. Ao contrário, nossas pesquisas são singelas, desprovidas de modismos, quase conservadoras. Talvez, por isso, me sentiria aviltado (e também envergonhado!) caso algumas das nossas iniciativas caíssem na malha fina de um comitê censor.

Trato aqui de aspectos conceituais e, em seguida, destaco três fatos concretos.

Em tese, nenhum Comitê de Ética, por mais douto, ilibado e competente que se declare, possui maior legitimidade para avaliar projetos de pesquisa do que os respectivos colegiados instituídos nos Programas de Pós-Graduação, nos Departamentos e nas Congregações das Unidades.

Todos os projetos, obrigatoriamente, são submetidos a essas instâncias. Retirar delas a responsabilidade da avaliação ética equivale a declará-las tácita e indiscriminadamente, como incompetentes ou suspeitas. Ao se apropriar das atribuições das Unidades, o Comitê esvazia o controle social e a responsabilidade coletiva, (conquistas tão festejadas noutros cenários!) e instaura a censura prévia e autocrática (de triste memória).

O mais grave, porém, são os entraves formais que esse quisto autoritário gera indiretamente, quer por meio do controle das pesquisas tidas previamente como inelegíveis (saúde, indígenas, etc.) quer pelo controle do tempo processual (reinvenção da burocracia) e dos recursos financeiros (acessados apenas aos projetos ‘autorizados’).

É nessa ambiência inquisitiva que ressurge e prolifera a antiga mentalidade cartorial de servidores que por motivações diversas, desencorajam ou ‘aconselham’ a mudar de temática, ou simplesmente despacham ao Comitê de Ética, sem qualquer análise, todos os projetos de pesquisas em cujos títulos constem as ‘palavras interditadas’.

Cito três exemplos recentes:

a) Projeto de pesquisa que realizo há anos, trata da situação profissional dos estudantes formados em Pedagogia após dois anos da conclusão do Curso. Como faço todos os anos, solicitei à coordenação do curso as informações desejadas mas, por descuido, o processo foi despachado à PROEG. Veja o teor do despacho proferido por sua titular: “ (…) solicito o trâmite junto ao Comitê de Ética para disponibilizar”. Sabe a zelosa educadora que os dados em pauta estavam e estão disponíveis no SIGA e não carecem de nenhum despacho cartorial ou coercitivo para acessá-los. Mas como o seu teor pode não interessar, e como existe um Comitê de Ética a ser justificado, lá se passaram lastimáveis 101 dias de espera e estupefação. Então o processo retornou como saiu, sem qualquer despacho conclusivo.

b) Estudo monográfico, sob minha orientação, pretendia colher as impressões dos estudantes indígenas da UFMT sobre o seu processo de formação acadêmica. Após várias tentativas para obter os dados do Projeto PROIND, a pesquisadora foi desaconselhada a desenvolver o estudo. O argumento: tratava da temática indígena e como tal, estava condicionado o aval do Comitê de Ética. Até uma entrevista sobre as conquistas e dificuldades encontradas por estudantes matriculados em cursos de graduação – se fossem indígenas – estaria supostamente proibida pelo festejado Comitê. Como se vê, ressurgiu das trevas o estatuto da tutela, a relativa incapacidade dos indígenas, o impedimento de expressarem suas opiniões e serem acadêmicos plenos. Você dirá ‘cautela’; eu direi discriminação!

c) Professora efetiva da UFMT no Curso de Enfermagem, mestranda do PPGE/IE sob minha orientação, se propõe a avaliar a relação pedagógica entre docentes e discentes indígenas. Como professora do curso lhe é facultado o pleno acesso aos estudantes nas atividades de ensino, acompanhamento, avaliação etc. Porém, como pesquisadora que se propõe a avaliar metodologicamente a relação com os sujeitos da pesquisa, está previamente impedida sob o argumento de que ‘pesquisa com indígenas carecem do aval prévio do Comitê de Ética’.

Em outras palavras, instituíram a esquizofrenia compulsória para a execução da tríade acadêmica: no ensino devo ser João, na extensão Napoleão e na pesquisa não sou ninguém… Falta-me o carimbo do Comitê!

Por isso, um apelo: reitora e pró-reitoras; CONSEPE e Comitê, colegas, reflitam. Será esse o caminho para a produção de conhecimento, para o desenvolvimento de pesquisas ética, social e academicamente significativas?

Como diz o seu Djuca: “Tô munto cansado, pessoá… Adjuda aí! Farcilita!”

Darci Secchi é Doutor em Antropologia, membro do PPGE/UFMT.

Fonte: http://peteducaufmt.blogspot.com.br


Segundo Juan A. Bonaccini em sua publicação Podemos censurar moralmente os outros?: “seria muito mais honesto reconhecer que censuramos simplesmente o que não gostamos porque não nos agrada, e que todos (ou quase todos) os nossos juízos de valor são juízos estéticos subjetivos, disfarçados amiúde de uma virtude que esconde muitos vícios…”
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3 pensou em “Comitê de ética: desestímulo à pesquisa ou censura prévia?

  1. Acredito que seja mais um problema interno da UFMT do que a realidade do sistema CEP/CONEP. Sou membro de CEP desde 2004, fico triste com a postagem do Doutor, e afirmo que uma realidade local não significa a realidade de um sistema nacional.

  2. Lamentável, mas aproveito a publicação para questionar a interferência em pareceres, que identifiquei no CEP do qual ainda sou membro… Se temos um Oficio de 2021 pedindo para explicitar como se dará a segurança nos ambientes virtuais, nos quais as pesquisas estão sendo realizadas e eu peço para o pesquisador explicitar e citar o documento, se um voltou cinco vezes e outro duas e a coordenação interferiu e liberou o parecer à minha revelia, qual ética tem neste comitê?

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