Museus fazem pesquisas científicas?

MUSEUS FAZEM PESQUISA CIENTÍFICA?
Um breve panorama sobre o papel dos museus de história natural.
prof. Dr. Renato S. Bérnils
Universidade Federal do Espírito Santo

O ser humano é um colecionador por natureza. Algumas pessoas acumulam grandes valores em dinheiro ou enormes quantidades de terras, enquanto outras preferem obras de arte ou simplesmente livros, selos, fotografias, brinquedos, relógios ou móveis antigos.

Nossa espécie, ao mesmo tempo, desenvolveu outra tendência natural: o hábito de classificar e organizar os objetos colecionados, não só para facilitar o acesso a cada peça, em caso de necessidade, mas também pelo prazer de ver o mundo ordenado.

Praticamente todos nós manifestamos essas duas propensões, às vezes expressa em detalhes imperceptíveis de nosso dia-a-dia, como no arranjo de anotações de receitas e coleções de CDs, ou no acúmulo e organização de arquivos eletrônicos em computadores pessoais.

Felizmente, muitas pessoas usam essas práticas para estocar representantes do mundo natural, seja em coleções vivas, como acontece em jardins botânicos, zoológicos, aquários, orquidários, bromeliários e similares, seja em coleções de minerais ou de exemplares mortos, como é o caso de acervos de animais empalhados ou guardados em álcool, plantas secas, fósseis, ossos, pedaços de troncos, sementes etc. As coleções de espécimes vivos são necessariamente transitórias, isto é, têm duração limitada, definida pelo tempo de vida dos exemplares que nelas são mantidos. Já as coleções de exemplares mortos têm duração
incalculável, pois, se técnicas corretas forem aplicadas, eles poderão ser conservados em condições perfeitas por muitos séculos ou até milênios, como acontece com formas mumificadas em antigas sociedades de todo o mundo.

Além de duráveis, essas coleções de “objetos” do mundo natural apresentam outra característica derivada das tendências humanas à organização e classificação do universo; trata-se da catalogação, numeração, etiquetagem e nomeação de cada peça em cada coleção. Ou seja, cada exemplar (ou partes dos exemplares) é guardado de forma a permitir o resgate de informações básicas a respeito de sua origem, como “de onde veio”, “em que data foi coletado”, “quem o encontrou”, “em que condições foi encontrado” etc.

Isso significa que cada plantinha, cada concha ou cada pedaço de osso ou de pedra guardado num museu não serve apenas para exposição pública ou para saciar a curiosidade de meia dúzia de pessoas, mas é fonte de muitas informações que, quando unidas a outras observações científicas (de campo, de laboratório ou de
publicações), ganha importância muito maior do que individualmente pode ter.

Essas grandes coleções de objetos naturais (amostras de animais, plantas, fósseis, rochas, solos, águas etc.) são feitas em museus que recebem a denominação genérica de “museus de história natural”. Esses museus funcionam como bibliotecas inesgotáveis e preciosas, na medida em que cada exemplar cadastrado, numerado, etiquetado e guardado nesses acervos constitui peça única, sem igual na natureza. O material preservado nesses museus representa uma fração muito pequena, diria até minúscula, da riqueza e da diversidade de formas naturais que conhecemos.

No entanto, graças aos cuidados com que se armazena e se estoca esse material nos museus de história natural, cada exemplar ali guardado tem poder de outorgar informações às mais diferentes áreas da pesquisa científica, que variam desde peculiaridades do próprio objeto em questão (âmbito da Zoologia, Botânica, Geologia, Paleontologia, Microbiologia e Antropologia) até suas relações com outros objetos naturais ou com distintos campos do conhecimento humano, como Ecologia, Saúde, Genética, Educação, História, Geografia, Economia, Sociologia e tantas outras.

A manutenção dessas coleções costuma gerar despesas modestas quando comparadas aos gastos acarretados por coleções históricas, arquitetônicas ou de obras de arte. Apesar disso, e de todos os estudos e conhecimentos que esses acervos de objetos naturais podem alavancar, sua valorização social é pequena e os museus se tornam, algumas vezes, alvo de zombaria, escárnio e troça.

Muitas pessoas pensam que museu nada mais é do que um amontoado de coisas antigas expostas num prédio velho com poucas informações e cheiro de mofo. Infelizmente, alguns “museus” são assim mesmo e esse tipo de exposição mal-feita em nada contribui para o enaltecimento da instituição Museu. O sujeito que visita uma dessas exposições sem graça, sem criatividade e às vezes de extremo mal-gosto, dificilmente terá vontade de entrar em outros ambientes denominados museus, e certamente achará perda de tempo e de dinheiro a manutenção pública desses espaços.

Isso, contudo, já foi diferente. Nos séculos XVIII e XIX, e mesmo na maior parte do século XX, antes da invenção e da popularização do cinema e da televisão, o mundo natural somente podia ser visto nas cidades através de livros ou em coleções vivas (zoológicos, orquidários etc.) e mortas (museus). Alguns desses museus antigos se mantinham como gabinetes de curiosidades, ou seja, coleções de raridades, exotismos ou até monstruosidades, que despertavam no público a mesma incredulidade e fascinação que hoje nos causa o mundo natural exposto de forma sensacionalista na televisão e na internet. Já naqueles tempos, porém, havia quem levasse a sério o levantamento de informações acerca do mundo natural, e essa postura investigativa se formou nos grandes museus europeus ao mesmo tempo em que se desenvolvia também nas primeiras universidades. Sábios da natureza, denominados naturalistas, percorreram o mundo nos últimos três séculos e enriqueceram os acervos desses grandes museus não apenas com espécimes curiosos e instigantes, mas também com o conhecimento por eles gerado, servindo de base para todo o desenvolvimento posterior da Biologia e todas suas implicações científicas, educacionais e sociais.

Assim, os museus de história natural não são apenas guardiões da memória ou um acúmulo de provas científicas que ficam guardadas para a posteridade, empoeirando em prateleiras e porões. São muito mais do que isso, pois constituem fonte constante de novidades científicas, e se mantêm como objeto de pesquisa o tempo todo. Nada cria bolor ou poeira nos museus de história natural, pois há técnicos abnegados cuidando permanentemente desses acervos, mas também porque centenas de profissionais se formam todos os semestres após estudar o material guardado em museus, incluindo dezenas de mestres e doutores que formam a
vanguarda científica de todos os países avançados.

Fora do Brasil, alguns museus desse tipo são potências científicas respeitadas e ouvidas sempre que os temas ligados à natureza são discutidos. É o que acontece com o Museu de História Natural de Londres ou com seus equivalentes de Paris, Berlim, Turim, Milão, Rotterdam ou Nova York, ou com o Instituto Smithsoniano (Washington) e o Museu Senckenbergiano (Frankfurt) e assim por diante. Em todos esses museus trabalham pesquisadores de ponta que são disputados por universidades e outros institutos de investigação científica, doutores que em nada são inferiores aos grandes nomes do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts)ou da NASA, a não ser em popularidade ou em salário.

No Brasil, contudo, ainda impera a visão estreita e desvirtuada de que museu é “lugar de velharia”, espaço morto que só acumula curiosidades e mal serve para passar o tempo em tarde de chuva, em cidade sem shopping center ou em dia sem futebol. No Brasil, quando um profissional declara que trabalha em museu, logo ouve as piadinhas de quem ignora o tipo de atividade que realmente se faz num museu. Os piadistas certamente não têm idéia do que acontece nas salas, laboratórios e escritórios que ficam atrás das paredes da exposição do museu, e nem imagina quantas informações importantes para seu dia-a-dia são produzidas pelos profissionais dos museus de história natural.

Qualquer investigação sobre avanços biológicos internacionalmente relevantes alcançados pelo Brasil nas últimas décadas, certamente esbarrará em instituições como USP, UNICAMP, UNESP, INPA, EMBRAPA, PUCRS ou nas diversas universidades federais espalhadas pelo país (UFRJ, UFMG, UnB, UFPR, UFC, UFPA etc.). Mas poucos sabem que uma porcentagem expressiva dos estudos mais significativos produzidos por essas instituições, nas diversas áreas da Biologia, passou por museus de história natural (ou museus de zoologia, herbários e equivalentes). Essa informação não chega às pessoas leigas, que vêem os resultados positivos da
Ciência produzida no Brasil apenas como uma conquista das universidades e dos institutos de pesquisa, sem perceber que os dados gerados por museus de história natural foram utilizados por essas pesquisas de sucesso.

Cabe reeducar o brasileiro, abrindo seus olhos para as coleções científicas reunidas nos museus que desenvolvem ou fundamentam pesquisas de ponta, e produzem não apenas conhecimento básico, mas também tecnologia e produtos que geram renda e movimentam a economia do País. É nosso papel mostrar às pessoas a ponte, a
ligação não imediatamente óbvia entre os museus, a Educação e a tecnologia aplicada da Medicina, da Farmácia, das diversas engenharias e assim por diante.
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