A milenar Amazônia Capixaba II

CARLOS FIORAVANTI | Edição 194 – Abril de 2012 – Revista Pesquisa FAPESP
Lagoa do Macuco na REBIO de Sooretama

Lagoa do Macuco na REBIO de Sooretama

Do fundo de um lago

Equilibrando-se em barcos infláveis, Álvaro e Paulo Eduardo de Oliveira, pesquisador da Universidade São Francisco com experiência nessa área, recolheram amostras de sedimentos de até dois metros de profundidade do fundo da lagoa do Macuco, que se espalha com cerca de um quilômetro de largura e três metros de profundidade, na reserva de Sooretama.

De volta ao Cena, Álvaro identificou pólen de 234 gêneros ou famílias de árvores, arbustos, ervas, samambaias e plantas aquáticas (cada grão de pólen mede de 20 a 60 micrômetros). “A identificação por pólen permite a identificação taxonômica com segurança apenas até o nível de gênero”, argumenta.

A maioria dos gêneros reconhecidos representava espécies de árvores típicas de mata atlântica, alguns, como o gênero Hydrogaster, exclusivos das matas de tabuleiro do sul da Bahia e norte do Espírito Santo. Outros gêneros são encontrados na Amazônica e na mata atlântica, como Glycydendron, Rinorea e Senefeldera.

“Por que acham que vieram de lá para cá?”, indaga Domingos Folli, botânico que antecedeu Siqueira no herbário, com a autoridade de quem fez 6.800 coletas. “Podem ter ido daqui para lá.” Pode ter ocorrido, claro, um fluxo de mão dupla.

As sementes das árvores podem ter sido transportadas pelo vento, pela chuva, pelos rios ou pelos animais que circulavam nas áreas de comunicação entre florestas antes possivelmente conectadas e, elas próprias, muito mais amplas. Ainda hoje vivem por aqui onças e outras raridades, como o gavião-real e mutuns. Uma das 380 espécies de aves já identificadas que vivem nessas matas, o tropeiro ou cricrió (Lipaugus vociferans), é típica da Amazônia. Lá e aqui, dificilmente é visto por ter uma plumagem que se confunde com a vegetação, mas é um dos primeiros pássaros que se põe a cantar, como se estivesse dando um alarme, ao ver pessoas pela mata.

Um dia, andando pela mata, Álvaro ouviu algo ainda mais raro: papagaios cantando Ilariê-ê-êê; a música da Xuxa! Ele não acreditou, mas depois soube que um bando de papagaios criados em casas tinham sido soltos ali havia poucos dias e ainda exibiam o repertório dos tempos de cativeiro.

Resquícios do mar

No material colhido no fundo da lagoa, Álvaro encontrou pólen dos três gêneros de árvores típicas de manguezais, indicando que há cerca de 8 mil anos um denso manguezal deve ter ocupado as margens da lagoa e dos rios que a abastecem. As análises de carbono 14, sob o cuidado de Pessenda, reiteraram essa conclusão.

“Esta área já foi estuário e a água do mar deve ter chegado até aqui há no mínimo 8 mil anos”, diz Álvaro do alto do barranco da lagoa, a quase 30 metros de altura. Esqueletos calcificados de algas e esponjas marinhas retirados do fundo da lagoa – bem maiores que os grãos de pólen, com até meio milímetro de diâmetro – reforçam a conclusão de que há 10 mil anos a água dos rios próximos deve ter ser misturada com a do mar, hoje a 23 quilômetros de distância.

“Os manguezais, que hoje vemos apenas ao norte, na divisa com a Bahia, devem ter desaparecido antes da ocupação humana, quando o nível do mar recuou”, diz Pessenda. Em colaboração com Marcelo Cohen, especialista em evolução de paleomanguezais da Universidade Federal do Pará, o grupo do Cena pretende conhecer os limites geográficos e as possíveis causas do desaparecimento dessa vegetação. Em um estudo anterior, Pessenda concluiu que há cerca de 40 mil anos uma floresta ocupava as áreas atualmente cobertas pelos manguezais na ilha do Cardoso, litoral sul paulista, porque a linha de costa estava a cerca de 100 quilômetros de onde está hoje.

Por volta de 6 mil anos atrás, o mar no litoral capixaba devia estar cerca de quatro metros acima do que está hoje, concluiu o geólogo Paulo Giannini, com sua equipe do Instituto de Geociências da USP. Sua conclusão se apoia em análises de fósseis de moluscos gastrópodes chamados vermetídeos (Petaloconchus varians), que formam colônias sobre rochas acompanhando a linha da água.

Giannini tem um pé em Linhares. “Há uns dois anos, Pessenda me pediu, ‘Paulo, descobre por que os campos nativos estão
lá’”, diz ele. “A vegetação não é só resultado do clima; temos de ver também a influência do substrato, por exemplo, se há milhares de anos existiram lagos na região, que depois foram assoreados, conformando as áreas em que cresceram grupos específicos de plantas.”

Os campos das matas do norte capixaba são áreas circulares, de 100 a 500 metros de diâmetro, que lembram uma área de pouso de naves espaciais. Podem ser diferentes entre si. Em um deles a camada de areia ocupa quase um metro antes de chegar a uma camada preta e compacta rica em metais e matéria orgânica, em outra a areia chega a quase dois metros de profundidade.

Sobre esse solo pobre em nutrientes crescem espécies distintas de gramíneas, mais rasteiras em um campo, mais altas em outro, às vezes com árvores isoladas, semelhante às formas mais abertas de cerrado. Em um dos campos, alojada em uma árvore isolada, exibe-se uma orquídea de flores brancas, a Sobralia liliastrum, comum nas matas da Chapada Diamantina, sul da Bahia, e já vista nas matas da serra dos Carajás, no Pará.

Os especialistas acreditam que as árvores da floresta que cerca os campos, adaptadas a um solo mais fértil, dificilmente poderiam sobreviver neste espaço pobre em nutrientes, que, além disso, permanece coberto por uma camada de água de 10 a 15 centímetros durante a época de chuvas. Uma vegetação de altura intermediária ocupa as áreas mais próximas da floresta, mas ainda ninguém arrisca dizer se os campos estão avançando sobre as matas, se estão recuando ou se simplesmente há uma oscilação anual, de acordo com a estação seca ou chuvosa. “Se o clima sazonal se mantiver”, diz Pessenda, “provavelmente as árvores de terra firme que se encontram no entorno dos campos não vão se atrever a colonizar o terreno alheio, que frequentemente se encontra encharcado. Não é o seu ambiente!”

Siqueira suspeita que os campos estejam encolhendo – e já viu muitos desaparecerem, por causa da areia fácil de ser retirada e por muitos anos bastante usada na construção de casas e prédios. “Se não houver grandes intervenções”, diz Martins, de Viçosa, “a tendência é se manterem, por causa do tipo de solo, que bloqueia o avanço das espécies florestais”.

Pessenda acredita que os campos devem estar na mesma área “há pelo menos 15 mil anos”. Em 20 anos de trabalho de campo, o que mais ele tem visto são florestas comendo os campos. Foi assim em Humaitá, no sul do estado do Amazonas, que Pessenda acompanhou durante cinco anos. Nos primeiros anos ele deixava um barbante estendido marcando os limites da mata com os campos. Ao voltar, no ano seguinte, custava a encontrar o barbante, engolido pela floresta, que tinha avançado um ou dois metros sobre os campos.

Fonte: revistapesquisa.fapesp.br/2012/04/10/a-milenar-amazônia-capixaba/
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