Projeto de Lei sobre Cultivo de Peixes

Espécie exótica é aquela que se encontra fora de sua área de distribuição natural e, quando oferece ameaça às espécies nativas, bem como à vida humana, aos ecossistemas ou habitats, é chamada de espécie exótica invasora.
Fonte: http://ecotecbio.wordpress.com

Por Gustavo Henrique Gonzaga da Silva em 22/08/2012

O Brasil é o país com maior diversidade de peixes em água doce no mundo. Essa biodiversidade constitui precioso patrimônio em termos de CAPITAL NATURAL, ou seja, de valor econômico, cultural, estético, científico e educativo; uma riqueza ambiental fabulosa, que se manifesta em escalas local, regional, nacional e planetária.

Infelizmente, a valoração desse potencial tem sido historicamente deficiente, negligente ou mesmo ausente. Uma evidência disso é o fato dos ecossistemas aquáticos do país estarem criticamente ameaçados em função da crescente demanda de água e hidroeletricidade, poluição, modificação/perda de habitats, além da introdução indiscriminada de espécies não-nativas. A introdução de espécies, em particular, se tornou muito frequente nas últimas décadas, sendo reconhecida pela comunidade científica, como causa magna de impacto sobre os ecossistemas naturais. Nesse sentido, a introdução de peixes não-nativos em águas interiores brasileiras chama a atenção, pela frequência com que ocorre e por envolver espécies de diferentes origens geográficas (inclusive entre bacias hidrográficas do próprio Brasil) – apesar de não ser recomendada por especialistas e de ser proibida por lei em várias instâncias. Essa tendência é muito preocupante, já que coloca em risco o CAPITAL NATURAL do país, ao promover perda de biodiversidade e serviços ecossistêmicos, deteriorando a qualidade ambiental.

Existem muitos agentes e atividades com elevado potencial de introduzir peixes em águas brasileiras, mas a aqüicultura merece destaque. Essa atividade tem sido a principal dispersora de peixes em ecossistemas aquáticos continentais ao redor do mundo, uma vez que existe predileção pelo cultivo de espécies não-nativas. No Brasil, essa preferência é clara, considerando que o país mantém quase toda sua produção aquícola de águas interiores fundamentada em espécies não-nativas, principalmente tilápias. A escolha pelo cultivo de peixes não-nativos em nosso país é um fato paradoxal e contraditório, considerando os riscos associados e todo o potencial de CAPITAL NATURAL (e.g. espécies nativas) à disposição. Essa tendência está provavelmente relacionada à idéia de que é mais simples e rápido importar tecnologias de produção e pacotes de aqüicultura baseados em poucas espécies cosmopolitas, já que a finalidade é produção e lucro, em curto prazo. Essa posição negligencia princípios ecológicos básicos de sustentabilidade, desprezando a pesquisa nacional com espécies nativas e os protocolos de produção de espécies autóctones já existentes. Desconsidera também a geração de benefícios econômicos e sócio-ambientais em longo prazo das espécies nativas e de serviços ecossistêmicos.

Um exemplo emblemático dessa disposição é o Projeto de Lei (PL)-5889-2009, do Deputado Nelson Meurer (PP-PR), que objetiva liberar e expandir o cultivo de espécies não-nativas (e.g. carpas e tilápias) em tanques-rede, a ser instalados em reservatórios de hidrelétricas do país. O projeto já foi aprovado por comissões da Câmara dos Deputados, incluindo uma de Meio Ambiente.
O PL desconsidera princípios básicos da biologia da invasão (e.g. pressão de propágulos, dispersão, invasão, impactos), assim como negligencia o fato de não existir confinamento completamente seguro em tanques redes. Escapes são inevitáveis durante o manejo do cultivo ou mesmo por avarias nas malhas decorrentes de desgastes pelo uso, incrustações, vendavais ou mesmo grandes animais aquáticos. Se aprovado, o PL certamente deve eliciar eventos de invasão em massa pelo país, facultando, por exemplo, que espécies não-nativas liberadas em um sistema de produção se dispersem e colonizem não apenas os reservatórios, mas também áreas críticas como Unidades de Conservação – e.g. bacia Amazônica e no Pantanal – ainda livres de espécies não-nativas. A aprovação desse Projeto de Lei confirmaria a falta de sensibilidade e bom senso dos gestores e mesmo da sociedade em relação à integridade e preservação de nossa diversidade biológica de água doce, única e excepcional – principalmente se considerarmos que a discussão ocorre à luz de diversas e contundentes informações científicas acerca dos impactos negativos atrelados às invasões.

Este é o momento do poder público, sociedade e ciência se aproximarem, e reconhecerem que espécies não-nativas representam elevado risco à integridade e perpetuação do CAPITAL NATURAL do país. Todos devem compreender claramente que a introdução de um organismo ou genótipo é um evento na maioria das vezes irreversível, com conseqüências negativas, capaz de ameaçar os ecossistemas nacionais e complicar ou comprometer ações de conservação correntes. Nesse âmbito, o mais adequado seria a adoção, de imediato, do princípio da precaução, por todos os atores sociais. A utilização desse princípio (“a espécie não-nativa é culpada até que provem sua inocência”) não deve ser considerada uma barreira para a produção nacional de peixes via aquicultura, assim como para os programas de governo que têm incentivado o setor produtivo. Ao contrário, o princípio deve ser encarado como um forte incentivo ao estabelecimento de políticas públicas para a preservação e uso sustentável de nosso CAPITAL NATURAL único, seja pelo setor extrativista ou produtivo, gerando benefícios econômicos e sócio-ambientais em longo prazo. Da mesma forma, deveriam ser incentivadas medidas rígidas e efetivas de controle e erradicação de espécies invasoras, estimulando também estudos sobre invasões biológicas e suas consequências aos recursos naturais do país.

Assim, diante da corrente disseminação de peixes não-nativos pelo país, e do risco iminente de decisões políticas (e.g. PL-5889-2009) poderem legalizar essa prática, decidimos escrever esse documento. O intento é alertar sobre a perspectiva que está se fortalecendo no país, onde estamos banalizando ou mesmo deliberadamente trocando o mais rico CAPITAL NATURAL do planeta, por um capital com menor valor agregado, menos justo, equitativo e sustentável. Essa perspectiva é preocupante, pois conflita profundamente com o florescimento cultural desejado pelo país, no qual se busca a compatibilização entre desenvolvimento econômico, equidade social e apreciação/conservação dos recursos naturais. Isso certamente não será alcançado com medidas políticas e de gestão que facilitem a introdução e dispersão de espécies não-nativas.

Angelo Antonio Agostinho
Universidade Estadual de Maringá

Dilermando Pereira Lima Jr.
Universidade Estadual de Maringá (UEM),

Fernando Mayer Pelicice
Universidade Federal do Tocantins,

Jean R. S. Vitule Federal
Universidade Federal do Paraná

Mário Orsi
Universidade Estadual de Londrina,

Irineu Bianchini Jr.
Associação Brasileira de Limnologia

Fonte: http://www.ablimno.org.br

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