Rubem Braga e Ruschi

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Braga seria um defensor público do pesquisador capixaba, criador do Museu Mello Leitão, em Santa Teresa, Espirito Santo, mantido pelo próprio Ruschi, com a floresta em torno, onde pesquisava Orquídeas e beija-flores. Ruschi denunciava há anos a crescente desertificação capixaba e brasileira, num tempo em que defender o meio ambiente da agressão humana era iniciaimente, motivo de sorrisos e, a partir de 1964, subversão da grossa.

Os governos deixavam claro que tinham feito a opção pelo progresso — preocupação ecológica era coisa de gente sensível, “delicada” e subversiva. É então que o governador capixaba Élcio Alvares, para completar o quadro de desinteresse, e com a sensibilidade e a visão que são parte da truculenta história politica capixaba, pretende tomar as terras que eram de Ruschi, uma reserva florestal intocada e única no quase deserto em que se transformou o Espírito Santo. Ruschi se defendia, repetindo: “A situação capixaba é muito grave sobretudo por causa do modelo que se armou no Espírito Santo, e vai agora, já foi, para a Amazônia. Nosso Estado foi, infelizmente, a Universidade que formou os maiores especialistas em destruição de florestas”.

Até a morte de Ruschi, Rubem seria porta-voz das teses do pesquisador no Rio, tornando-se o primeiro jornalista a discutir a destruição da natureza brasileira e a defender causas ecológicas, ainda que a palavra sequer existisse — e apesar de seu sólido passado de caçador. Esse tema iria irritar sobremaneira seus amigos urbanos, que não viam sentido nem interesse em perder tempo escrevendo sobre o desaparecimento do jacu-preto ou de um riacho, “Ruschi não larga meu pé”, protestava Rubem. E escrevia o que o pesquisador queria.

“Mas, Ruschi, eu já falei do jacu-preto!” E Ruschi respondia dando uns tapas no amigo, rindo. Curiosa relação entre o cronista e o naturalista: Ruschi tenso, veemente em suas denúncias, atento, impaciente com jornalistas que nada sabiam sobre meio ambiente. Braga, ao seu lado, é quase um menino brincalhão. Rogério Medeiros, jornalista capixaba e mais tarde, autor da biografia do naturalista, conheceu Rubem no Rio e, nos anos 1970, retornou a Vitória e mostrou ao Jornal do Brasil, do qual era correspondente, que a imprensa capixaba tratava Ruschi com zombaria e desdém. Chegava-se a suspeitar da importância científica das pesquisas do naturalista. Medeiros envia informações sobre a ignorante visão capixaba sobre Ruschi para Braga, que o atende com delicadeza, mas desliga o telefone sem se despedir, assim como se afasta de uma conversa quando não tem nada a dizer.

Em janeiro de 1970, grato, Ruschi batiza uma orquídea que acabara de descobrir com o nome científico de Physosiphon bragae ruschi, em homenagem ao Braga, em reconhecimento pelos seus trabalhos em favor da salvação do patrimônio natural do Espírito Santo e do Brasil. A orquídea tem raizes esbranquiçadas como o Braga tem a cabeleira, lembraria Drummond logo depois:

“Seu caule primário é recoberto de bainhas agudas, como agudas são as observações que o Braga faz sobre a vida, os homens, as mulheres e as coisas; suas flores são comumente geminadas, raramente solitárias. Ai parece haver uma contradição com a natureza do Braga, que combina solidão e geminação, mas, pensando bem, ele é um solitário orquidáceo comunicante raramente desligado de outra flor”.

E resume: “Não é todo mundo que merece virar nome de flor. No caso do Braga, se a orquídea souber, deve ficar satisfeita“.

Em 1981, Rubem assiste ao tristemente ínesquecível Itália 3 X 2 Brasil ao lado do amigo, no casarão de Ruschi, em Santa Teresa, serra capixaba, e descobre que Zoff, o goleiro e capitão italiano, é sobrinho de Augusto. E, quando Ruschi adoece mortalmente, em 1985, e ocorre a pajelança, através da qual os caciques Sapaim e Raoni tentam salvá-lo, Medeiros liga para Rubem: “O Ruschi quer que você venha aqui”. “Agora? Cheio de repórteres? Não vou de jeito nenhum!” Mas foi — e assistiu a uma das sessões.

Ruschi pediu a Rubem e Medeiros que contassem a história da sua luta ecológica e Braga, depois da morte do amigo, foi algumas vezes a Vitória para recolher material. Ficava no belo Hotel Senac, em cima dos penedos, em frente ao mar aberto ou se hospedava no Porto do Sol, em Guarapari.

Quem o acompanhava no uísque do entardecer era o jornalista e especialista em jazz, Marien Calixte, a quem Rubem perguntou, certa vez, depois de um longo silêncio “Você acredita em Deus, Marien?”, Calixte tentou explicar que, vagamente, não tinha como acreditar num ser superior, moralista, barbudo e machista, como a divindade do judaísmo, do cristianismo e do islamismo — mas que acreditava, sim, numa inteligência regendo o universo.

“Bobagem, Marien, Braga respondia. “Somos seres simples, precisamos de pouca coisa. Precisamos disso aqui, o vento, a beleza do mar, o ócio,” E voltava o uisque e a uma brincadeira infantil: esconder-se atrás das folhas de um jornal e comentar, baixinho, à chegada de cada hóspede “-E esse aí? Esse é do SNI! E aquele casal que vai entrando? Preste atenção: aquela não é a mulher dele, de jeito nenhum. Quer apostar?”.

Gostava do Ferrinhos na praia da Costa, onde apreciava a muqueca capixaba na panela de barro, mas reclamava do proprietário Fernando Ferreira do Amaral, um falastrão. Levava molinete para pescar, bebia lentamente uma cachaça, e o livro sobre Ruschi não saía, como nunca saiu: Medeiros o escreveria sozinho. E Rubem comentaria: “Você me impediu de escrever meu único livro não de crônicas, Rogério”.


Fonte: Retirado do livro “Rubem Braga: Um Cigano Fazendeiro do ar” de Marco Antonio de Carvalho
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