Alvaro Aguirre e a conservação dos muriquis

Muriqui

Quando Cabral aportou no Brasil em abril de 1500, se deparou com uma pujante floresta litorânea, que séculos depois seria denominada “Mata Atlântica”. Desde Pero Vaz de Caminha, que chegou com Cabral, essa mata foi assunto e inspiração de muitos escritores europeus, que se encantaram com sua complexidade e com seus habitantes, humanos e não humanos.

Dentre os habitantes não humanos, os que mais chamaram a atenção foram os macacos, certamente por não serem nativos da Europa e, também, pela semelhança com a nossa própria espécie. O interesse dos europeus provocou um grande tráfico de macacos brasileiros, que eram capturados aos milhares para serem exportados e comercializados em cidades europeias. A maioria morria no caminho, mas os que sobreviviam eram exibidos como animais de estimação ou terminavam em coleções de museus de história natural, que começaram a se organizar a partir do Século XVIII.

Com base em relatos publicados por viajantes e peles de macacos guardadas no Museu D’Ajuda, de Lisboa, o naturalista francês Etienne Geoffroy Saint Hilaire publicou, em 1806, a primeira descrição científica do macaco brasileiro que é conhecido como muriqui ou monocarvoeiro.

Muriqui

Muriqui


De acordo com relatos de viajantes naturalistas, esses primatas ainda eram comuns em muitos lugares do leste do Brasil, entre São Paulo e a Bahia, até meados do Século XIX. A partir da segunda metade do Século XIX e, principalmente, ao longo do Século XX, as matas costeiras que abrigavam os muriquis foram rapidamente destruídas e o seus habitats fragmentados e isolados. As pequenas populações de muriquis isoladas em capões de mata foram facilmente aniquiladas pela caça predatória e por doenças transmitidas por seres humanos e animais domésticos, colocando a espécie em alto risco de extinção.

O Século XX também viu surgir no Brasil os cientistas preocupados com a conservação biológica, num país que perdia rapidamente as suas riquezas naturais. Dentre esses naturalistas, surge o nome de Alvaro Coutinho Aguirre, nascido em 1899 na cidade de Santa Teresa, no coração da Mata Atlântica.

Aguirre foi um pioneiro na conservação e manejo de fauna silvestre, trabalhando para o antigo Serviço de Caça e Pesca, do Ministério da Agricultura. Realizou importantes pesquisas sobre a caça e pesca no vale do rio Doce e no vale do rio São Francisco, além de estudos sobre o jacaré-açu, sobre a exploração do caranguejo, sobre a alimentação de aves silvestres e sobre a avoante do nordeste, dentre vários outros.

Foi o criador e primeiro superintendente da atual Reserva Biológica de Sooretama, em Linhares, uma das mais importantes unidades de conservação da Mata Atlântica de terras baixas. No final da década de 1960, já com cerca de 70 anos de idade, Aguirre foi designado para
realizar o estudo que mais o notabilizou.

Casa do Quirinão no interior da REBIO Sooretma - local onde Aguirre costumava ficar quando estava na Reserva

Casa do Quirinão no interior da REBIO Sooretma – local onde Aguirre costumava ficar quando estava na Reserva

Casa do Quirinão no interior da REBIO Sooretma – local onde Aguirre costumava ficar quando estava na Reserva

Por ser um zoólogo experiente e determinado, coube-lhe a árdua tarefa de ir atrás do escasso muriqui para estudar a sua biologia, ecologia e, principalmente, o seu estado de conservação. Depois de minucioso trabalho de pesquisa em museus e na literatura, Aguirre percorreu milhares de quilômetros de jipe, entrevistando pessoas, embrenhando-se nas matas, produzindo um conjunto de informações de inestimável valor. Seu trabalho sobre os muriquis foi publicado pela Academia Brasileira de Ciências em 1971, tornando-se uma referência clássica sobre esse notável primata brasileiro.

Hoje são reconhecidas duas espécies de muriquis, ambas muito ameaçadas de extinção. Dezenas de cientistas, conservacionistas e estudantes, de instituições públicas e privadas, se empenham para evitar que esses primatas sejam extintos em futuro próximo. Aguirre faleceu em 1987, mas se hoje vislumbramos uma esperança de preservação da espécie, em grande parte devemos ao idealismo e perseverança desse exemplar capixaba, que dedicou sua vida à conservação da natureza.

Artigo de Sergio Lucena – Primatólogo e Professor de Zoologia da UFES
Publicado inicialemente em: http://www.capitaglobalnews.com.br/default.asp?url=meioambiente