Alterações no Código Florestal Brasileiro: impactos potenciais sobre a ictiofauna

Rio Cinco de Novembro em Santa Teresa

Rio Cinco de Novembro em Santa Teresa

Rio Cinco de Novembro em Santa Teresa
na maioria das vezes a falta de mata ciliar as margens dos rios não está associada a produção de alimentos,
mas causa visível empobrecimento do sol
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Interessante trabalho da Dra Lilian Cassati apresenta uma análise dos possíveis impactos que a diminuição da vegetação nativa, notadamente das florestas ripárias, pode causar sobre a ictiofauna. Três conjuntos de aspectos funcionais primordiais desempenhados pelas florestas ripárias são discutidos: transferência de energia solar ao ambiente aquático, interceptação de nutrientes e sedimentos que adentram nos rios e trocas de material orgânico entre o sistema terrestre e aquático. Conclui-se que qualquer alteração que se traduza em mais perdas de vegetação nativa, seja em áreas de preservação permanente ou em reservas legais, pode gerar perdas de espécies, homogeneização faunística e diminuição de biomassa íctica.

Três pontos da proposta substitutiva ao Projeto de Lei nº 1.876/1999 serão discutidos com maior detalhe por estarem mais diretamente relacionados com a manutenção da integridade da ictiofauna.

Sobre as áreas de preservação permanente às margens de rios a Dra. Lilian faz as seguintes considerações:

As áreas de preservação permanente são coincidentes com parte das zonas ripárias, que podem ser definidas como áreas de transição semiterrestres regularmente influenciadas pela água doce, normalmente se estendendo desde as margens dos corpos d’água até as bordas das comunidades das terras mais altas. Pela própria definição, entende-se que os limites das zonas ripárias não são facilmente identificados e podem variar em função da sazonalidade. Alguns estudos sugerem que 18 m (Barton et al.1985), 30 (Clinnick 1985) ou 50 m em cada margem (Kasyak 2001) seriam adequados para garantir a proteção de organismos e processos ecológicos nessa área.

A legislação Brasileira vigente, de acordo com a Lei nº 7.803 de 18/07/1989, dispõe que a largura da Área de Preservação Permanente (APP) varia de acordo com a largura do curso d’água, sendo de 30 m para cursos d’água com menos de 10 m de largura, situação em que se encaixa a grande maioria dos riachos brasileiros.

Dentre as modificações propostas ao Código atual, está a diminuição das faixas marginais em cursos d’água de pequeno porte (até 5 m de largura) que passaria a ter 15 m em cada margem (atualmente são 30 m). Se atualmente já é notável o déficit de proteção nas áreas de proteção permanente, com a aprovação da nova lei, esse déficit certamente será ampliado. Isso afetaria a grande maioria dos cursos d’água brasileiros e traria grandes prejuízos em termos de perdas de diversidade local e regional, pelos motivos já levantados e por expor mais ainda à degradação ecossistemas submetidos a outras ameaças (p. ex., invasão de espécies exóticas, poluição, construção de estradas).

Somente na última lista de espécies ameaçadas do Estado de São Paulo, das 66 espécies de peixes classificadas em algum grau de ameaça, 45 mostram alta fidelidade a riachos e, portanto, são dependentes da qualidade do hábitat circundante e interno. Em um estudo mais recente, Nogueira et al. (2010) detectaram que 819 espécies de peixes com área de vida restrita poderiam ser enquadradas em categorias de ameaça conforme a IUCN (2001), indicando que mais de um terço da diversidade de peixes de água doce corre sérios de extinção riscos a curto e médio prazo.

Considerando drenagens em regiões com relevo suave, é possível identificar um gradiente de perda de qualidade do hábitat associado ao processo de degradação da floresta adjacente aos riachos, quase sempre resultado do incremento da entrada de sedimentos e maior insolação no curso d’água.

Na presença de floresta ripária com alta qualidade, a ictiofauna apresenta alta riqueza de espécies, nenhuma contribuição de espécies exóticas, baixa dominância e alta contribuição de itens alóctones (sementes, frutos e insetos terrestres) na sua dieta. Em situações de extremo assoreamento, o leito do canal encontra-se coberto por sedimentos finos, o volume de hábitat e o fluxo de água estão notadamente reduzidos, caracterizando condições muito favoráveis ao estabelecimento de macrófitas aquáticas enraizadas emersas, especialmente do gênero Typha e, neste cenário, a ictiofauna é dominada por espécies acidentais, oportunistas e com habilidade para consumir detritos orgânicos, que se torna o item alimentar dominantes nessas circunstâncias, acarretando diminuição de biomassa íctica, perdas de espécies mais sensíveis e maiores chances de homogeneização biótica.

Na nova proposta em foco está contemplada a alteração do referencial para demarcação da faixa de preservação permanente às margens de rios, que deixa de ser o leito maior, conforme disposto na legislação vigente, e passa a ser o leito menor. Essas demarcações sofrem influência das variações sazonais associadas à dinâmica dos cursos d’água que promovem trocas entre o meio aquático e o ripário.

As árvores da floresta ripária são adaptadas a solos permanentemente saturados e essas zonas alagadas laterais (“wetland pools”) são biorreatores de processamento de matéria orgânica e estocagem temporária; durante as águas baixas, essas áreas recebem material alóctone (p.ex., folhas, sementes, insetos) e trocam esse material com o curso d’água durante as cheias.

Qualquer diminuição na proteção da dimensão lateral dos cursos d’água pode alterar as entradas de material orgânico e inorgânico, com consequências para todo o sistema aquático.

O conhecimento produzido frente à diversidade de organismos do ecótone terra/água de diferentes biomas brasileiros ainda é incipiente para permitir generalizações sobre o tamanho mínimo ideal de proteção ripária.
Por exemplo, as veredas do Cerrado brasileiro são formações que se estendem de 30 a 150 m a partir da margem dos riachos e abrigam alta diversidade de plantas e animais, sendo um sistema extremamente vulnerável à erosão.

Na Amazônia, em regiões de águas claras ou pretas, os igarapés de terra firme demonstram-se muito distintos dos igapós, indicando diferentes níveis de dependência entre os sistemas aquáticos e as florestas adjacentes.

Essas constatações sugerem que as funções desempenhadas pela floresta ripária com relação à biota aquática são muito diversas e podem variar ao logo dos gradientes ambientais que definem os diferentes biomas brasileiros, e também indica um assunto prioritário para a pesquisa científica.

Na falta de conhecimento científico, é fundamental prezar pela ação mais cautelosa possível.

A Dra. Lilian Castti é Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq – Nível 2. Possui graduação em Ciências Biológicas – Fac. Filosofia, Ciências e Letras de Rib. Preto-USP (1993), Mestrado e Doutorado em Ciências Biológicas (Zoologia) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – IB Botucatu (1996 e 2000, respectivamente). Atualmente é Professor Assistente Doutor da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – IBILCE São José do Rio Preto. Tem experiência na área de Zoologia, nos temas relacionados com ecologia de peixes de riachos.

Este seu trabalho foi publicado em 15 de outubro de 2010 e pode se lido na íntegra na biotaneotropica.