A queda do muro entre ciências e humanidades

Fonte: http://www.franciscoacuyo.com

Neste ano, comemora-se meio século da publicação de ‘A estrutura das revoluções científicas’, do físico e filósofo norte-americano Thomas Kuhn (1922- 1996).

Qualquer lista relacionando os 100 livros mais relevantes e influentes do século passado não poderia deixar “A estrutura das revoluções científicas” de fora, sob pena de ter seus critérios de escolha devidamente contestados. As ideias contidas nessa obra transformaram radicalmente a imagem da ciência que predominara até então.

Como consequência, as áreas de história, sociologia e filosofia da ciência nunca mais foram as mesmas depois de 1962. O livro inspirou até os chamados science studies (estudos sobre ciência), campo responsável pelas mais ricas discussões sobre a ciência nos nossos dias.

A estrutura – traduzida pela primeira vez no Brasil em 1975 – deixou marca indelével em praticamente todos os campos do saber, a ponto de o filósofo norte-americano Richard Rorty (1931-2007) ter sentenciado que Kuhn contribuiu para remodelar a cultura humana como um todo – notadamente, para borrar a fronteira demarcatória entre ciências naturais, sociais e humanas.

O sucesso da obra não deve, todavia, ser identificado apenas com a atitude de aprovação. Pelo contrário. Se houve autor alvo de ataques contundentes (e virulentos), esse foi Kuhn. Tanto assim que empregou, em grande medida, sua produção acadêmica pós-1962 para responder às críticas, alegando sempre ter sido mal compreendido.

Críticas – O que teria levado Kuhn, então, a sofrer tamanha ‘perseguição’? Em grande parte, isso se explica pelo modo como ele descreveu o desenvolvimento da ciência, uma vez que este se distinguia substancialmente da forma como, até então, o progresso científico fora interpretado. A nova imagem de ciência proposta por Kuhn pode ser assim esquematizada: ciência normal – crise – revolução científica – nova ciência normal, e assim sucessivamente.

Em linhas gerais, a ciência normal é uma modalidade de pesquisa conduzida sob os auspícios de um paradigma, sendo este responsável por instaurar um consenso em vários níveis (metodológico, epistemológico, ontológico e axiológico) no interior de uma comunidade.

Nessa fase, os cientistas lidam com ‘operações de limpeza’ em seu trabalho cotidiano, no sentido de precisar resolver, de maneira personalizada e criativa, quebra-cabeças; ou seja, aprofundar o conhecimento sobre os ‘fatos’; aprimorar o próprio paradigma; e aumentar a correspondência dos ‘fatos’ com esse último.

No período de ciência normal, a pesquisa progride de modo linear e cumulativo, graças ao consenso generalizado engendrado pelo paradigma. A confiança no paradigma pode ser quebrada, entretanto, quando os quebra-cabeças da prática normal se tornam anomalias, isto é, problemas que, a princípio, não são mais passíveis de solução.

A crise instaurada em função da estagnação do paradigma vigente pode ter como desfecho possível uma revolução científica, episódio de desenvolvimento não cumulativo em que um paradigma é substituído por outro, incompatível com o anterior.

Foi, efetivamente, com relação ao tópico das revoluções científicas que Kuhn despertou a ira de seus contemporâneos. Afinal, a leitura mais comum compreende que Kuhn estaria comparando – ao afirmar que, na disputa entre paradigmas concorrentes, não se pode recorrer a critérios estritamente lógicos e empíricos para decidir a querela – a ciência com outras formas de conhecimento normalmente consideradas ‘irracionais’ ou ‘subjetivas’.

Inclusive, no livro, Kuhn estabelece analogias surpreendentes entre essas formas de conhecimento e a revolução científica: mudança de perspectiva (gestalt), diálogo de surdos, revolução política, conversão religiosa etc. Tudo isso para ilustrar a tese – denominada por ele incomensurabilidade – segundo a qual não haveria possibilidade de se estatuir um juiz neutro para bater o martelo, de modo inequívoco, em prol de um dos dois lados.

Paradigmas, portanto, argumentariam sempre de forma autorreferente, não havendo possibilidade de se lançar mão da coerência lógica e racional, nem da correspondência com a verdade sobre a natureza.

Provocação – Nada poderia soar mais provocador para os defensores da ciência como modelo de racionalidade e objetividade. Em obras posteriores, Kuhn tentou desfazer os mal-entendidos sobre seu ‘irracionalismo’, ‘subjetivismo’, ‘relativismo’… Sua alegação básica foi afirmar que a incomensurabilidade, ao contrário do que pensaram seus adversários, seria justamente a condição necessária para que a ciência continuasse progredindo, no sentido de investigar parcelas da realidade até então desconsideradas.

A incomensurabilidade propiciaria o advento de novas especialidades científicas – daí sua proposta estar afinada com as concepções que defendiam uma racionalidade especial da ciência.

Sem querer entrar nessa disputa por ora, o fato é que, curiosamente, suas ideias foram incorporadas principalmente pelas áreas ligadas às ciências sociais e humanas, tendo havido até, a partir da década de 1970, verdadeira corrida em busca de paradigmas perdidos nas diversas disciplinas. Em contrapartida, nas ciências naturais – originalmente o objeto de análise de A estrutura – a recepção das ideias kuhnianas passaram ao largo do entusiasmo.

Seja como for, só o fato de Kuhn não ter explicado a ciência em termos apenas de metodologia – tendo cunhado a noção mais abrangente de paradigma (visão de mundo e valores compartilhados) – representa grande avanço em comparação à concepção de inspiração positivista predominante à época – e, talvez, ainda hoje. Isso sem contar outras contribuições igualmente importantes.

O autor – A compreensão da relevância da publicação de A estrutura seria incompleta ou injusta se não falássemos algo sobre seu autor. Não só o conteúdo do livro é inovador, mas também o que tornou possível sua existência. Kuhn só foi capaz de nos legar obra tão significativa porque viveu a experiência da interdisciplinaridade de modo intenso.

Mais do que isso, Kuhn transitou entre as ciências naturais e as ciências sociais e humanas de modo exemplar, valendo lembrar que, por exemplo, no período final (1958-1959) de gestação de A estrutura, trabalhou no Centro de Estudos Avançados em Ciências do Comportamento, na Califórnia (EUA), que foi fundamental para que concebesse a ideia de paradigma como consenso, ao ter convivido com o dissenso reinante entre os cientistas sociais.

Tendo doutorado em física teórica, Kuhn deu uma guinada para a história e a filosofia da ciência, mas sem ter perdido seu interesse original naquela área. Na verdade, é como se Kuhn tivesse feito esse movimento de ‘sair’ de sua área de formação para buscar ferramentas que lhe permitissem conhecê-la melhor, olhando-a de fora. E, ao entrar nas humanidades, levou toda sua bagagem de cientista, que lhe permitiu causar, ‘naturalmente’, verdadeira revolução dentro daquelas.

A trajetória de Kuhn nos inspira a não pensar mais em termos de dentro e fora, uma vez que seu grande legado foi ter derrubado as fronteiras entre ciências e humanidades. A questão persistente é: como podemos levar para o nível institucional, sem perda da espontaneidade, o que Kuhn fez ‘naturalmente’ durante toda a sua vida?

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