O Brasil descobre a pesquisa científica

Artigo de Maria Margaret Lopes, pesquisadora da Unicamp
e autora do livro “O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais no século XIX” (Huciteb-UnB, 2009).
Capas do Boletim do Museu de Biologia Prof. Mello Leitão

Capas do Boletim do Museu de Biologia Prof. Mello Leitão

Na ausência de universidades, os acervos de Ciências Naturais foram responsáveis pela pesquisa no Brasil ao longo de todo o século XIX

Diferente do que ocorreu na Europa, o conhecimento científico desenvolvido no Brasil do século XIX não veio de universidades. Por aqui, foram os museus de Ciências Naturais que assumiram esse papel. Ao entrar em um museu desse tipo, o visitante, acostumado com as exposições de peças e coleções de objetos, não imagina que está em um lugar onde foram produzidas pesquisas de ponta que ajudaram a criar perspectivas para as regiões e nações em luta por suas hegemonias. Firmando-se como espaços colecionistas, os museus brasileiros estabeleceram-se como poderosas instituições de controle de políticas, de concepções científicas e de troca de conhecimentos.

No final da década de 1870, o Museu Nacional do Rio de Janeiro foi apontado como exemplo pelos pesquisadores latino-americanos da Argentina, do Chile e do Uruguai. Criado por D. João VI como um espaço real em 1818, conservava seu caráter metropolitano e universal nos moldes europeus. Desde seu início, expunha coleções trazidas pela Corte: mais de 300 aves, 1.200 minerais, medalhas, moedas e maquinário da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. Reunia antiguidades egípcias e greco-romanas. Possuía um laboratório de Química, coleções mineralógicas internacionais de referência para investigação e coleções de todo o Império português.

Amplamente modernizado por uma reforma científica feita em 1876 sob a direção de Ladislau de Sousa Melo Netto (1838-1894), o museu reorganizou suas já volumosas coleções pelas novas seções, separadas por disciplinas, ao tom da época: a primeira seção com as áreas de Antropologia, Zoologia Geral e Aplicada, Anatomia Comparada e Paleontologia Animal. A segunda, com Botânica Geral e Aplicada e Paleontologia Vegetal. A última, com Ciências Físicas, Mineralogia, Geologia e Paleontologia Geral.

O Museu Nacional funcionou ao longo do século XIX como um órgão consultor dos governos para pesquisa em Geologia, mineração e recursos naturais. Em suas seções e laboratório eram analisadas inúmeras amostras que chegavam de todas as regiões do país, como carvão, minerais, plantas, animais, esqueletos humanos de indígenas ou escravos de diferentes nações para estudo das raças, bem como ossadas fósseis de enormes mamíferos desconhecidos.

Durante a gestão de Ladislau Netto, a instituição passou a contar com sua publicação científica periódica, Archivos do Museu Nacional, primeira revista científica duradoura no país, voltada exclusivamente às ciências naturais. Tratava-se de uma estratégia clássica, usada ainda hoje pelas instituições de pesquisa, para fazer intercâmbios com publicações internacionais.

Na busca de mais inserções internacionais, o museu também atraiu para seus quadros jovens profissionais estrangeiros que procuravam novas oportunidades de trabalho e estavam dispostos a investigar regiões ainda pouco exploradas. Dentre eles, havia: Charles Hart (1840-1878), que organizou a Comissão Geológica do Império; Orville Derby (1851-1915), à frente dos serviços geológicos em São Paulo; Emilio Goeldi (1859-1917) e Hermann von Ihering (1850-1930), que mais tarde dirigiram os museus Paulista e de Belém do Pará. De Santa Catarina, o naturalista viajante do museu, Fritz Müller (1821-1897), escreveu sua defesa do darwinismo: Für Darwin (Para Darwin). No empenho de se recolher um número cada vez mais representativo de coleções, multiplicaram-se as expedições de exploração de um território nacional em constante expansão.

Surgiram os cursos livres e as conferências públicas de divulgação das ciências que lá se praticavam, permitindo inclusive o acesso às mulheres, impedidas, até 1879, de frequentar os programas de estudo superior existentes. Em 1880, o Museu Nacional abrigou o primeiro Laboratório de Fisiologia Experimental do país. Nessa época, os museus desse campo de conhecimento se proliferaram, como sintomas explícitos de um interesse crescente pelas Ciências Naturais. Algumas instituições eram criadas, e outras reformuladas.

No Ceará, o Museu Rocha se concretizou. Já no sul do Brasil, foi organizado, em 1876, o Museu Paranaense, “marchando na vanguarda do progresso”, como teria dito D. Pedro II, em passagem pela capital do Paraná. Criado a partir de uma iniciativa da Sociedade de Aclimatação de Curitiba, integrou as complexas redes de circulação de produtos naturais, antropológicos, agrícolas e industriais. Essas produções viajavam em busca de prêmios. Vinham das capitais provinciais ao Rio de Janeiro, e daí às grandes Exposições Universais da segunda metade do século XIX.

Barbosa Rodrigues (1842-1909), conhecido botânico brasileiro, que, mais tarde, se tornaria diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, dirigiu o Museu Botânico do Amazonas entre 1883 e 1889. Como uma instituição de pesquisa regional e especializada, o Museu Botânico era voltado tanto para a diversidade natural da vegetação exuberante da floresta quanto para a diversidade desconhecida das etnias humanas dos seus habitantes. Sabedor da cobiça internacional que a Amazônia já despertava, Barbosa Rodrigues fazia com que as coleções só pudessem ser permutadas se houvesse triplicata no museu.

A Sociedade Filomática do Pará, por iniciativa de Ferreira Pena, deu origem, em 1871, ao atual Museu Paraense Emílio Goeldi, que, entre 1914 e 1922, pela primeira vez na América Latina, foi dirigido por uma cientista, a zoóloga Emília Snethlage (1868-1929).

Atento a problemas comuns aos museus de todo o mundo naquele período – edifícios nunca suficientes ou adequados para as coleções –, Goeldi propunha, no Pará, a transformação dos museus em institutos de pesquisa. “Aqui um Instituto Botânico, acolá um Instituto Mineralógico-Geológico e mais um Instituto Etnográfico, de bom grado sacrificaria a idéia de um único edifício monumental novo”, afirmou o naturalista em relatório do museu.

De 1896 a 1914, o Boletim do Museu Paraense divulgou de forma ininterrupta, em mais de cem artigos científicos, principalmente a produção de seus diretores sobre a Zoologia e a Botânica da região amazônica, mas também, em menores proporções, as pesquisas sobre Geologia, Paleontologia, Etnografia e Arqueologia. Emílio Goeldi, no Pará, e Hermann von Ihering, em São Paulo, conscientes da localidade de suas instituições e da dimensão de suas coleções, abriram guerra ao que consideraram falta de especialização do Museu Nacional.

Para as últimas décadas do século, terminado o Império, o Museu Nacional do Rio de Janeiro, fazendo jus ao seu nome, permaneceu incorporando os achados locais dos estados ao seu acervo e, redefinindo-os, continuou a apresentá-los como nacionais. As enormes coleções centenárias, já reorganizadas em outros quadros científico-conceituais, passaram a competir com as novas coleções que se multiplicavam nos estados. Os intercâmbios internacionais para classificação de coleções e publicação de artigos científicos foram a marca desses museus brasileiros desde as últimas décadas do século XIX.

No Brasil, os museus de Ciências Naturais contam hoje com uma expressiva produção bibliográfica. Mesmo assim, ainda carecem ser exploradas as coleções de animais empalhados, de plantas, cerâmicas, adornos e fósseis, na documentação e na iconografia, dos museus de Belém do Pará, Botânico do Amazonas, Paranaense de Curitiba, do Museu Paulista e do Museu Nacional do Rio de Janeiro. O estudo desses acervos pode ampliar a compreensão sobre as culturas científicas do século XIX no Brasil. E lembrar um tempo notável em que museus, além de visitados pelo público, eram produtores de conhecimento por excelência.

Fonte: http://www.revistadehistoria.com