Relatório do SISBio: um entrave ao conhecimento científico

Artigo de Ruy José Válka Alves, Hélcio Gil Santana e Olaf H.H. Mielke
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Quino

O relatório on-line do SISBio destinado ao registro das coletas de material biológico é de uma complexidade que ofende o pesquisador. O preenchimento é penoso, e são exigidos dados que nem sempre estão disponíveis dentro do prazo. E mais, revela-se um pesado óbice à atividade científica, sem paralelo em outras outorgas do Poder Público.

Estamos num momento histórico em que o inventário da Biodiversidade é visto como tema de urgência e importância ímpar em que pese a rápida perda de habitats e as modificações climáticas. Desta feita, pesquisas nesse sentido deveriam ser facilitadas e estimuladas. Mas, como já comentamos (p. ex. JC online 3216), muitos óbices impostos não precisariam existir ou poderiam ser minorados. Agora, afigura-se novo e pesado fardo: os relatórios obrigatórios ao SISBio para os portadores de licença/autorização de coleta de material biológico.

Antes de adentrar em dificuldades (ou impossibilidades) práticas já “sentidas” no preenchimento do relatório, é oportuno refletir sobre alguns pontos.

1 – O primeiro é o chamado “Custo Brasil”. Todos já conhecem o seu significado. As dificuldades hercúleas com que cidadãos, empresas, instituições enfrentam quando tentam ou empreendem qualquer atividade neste País. Por que reiterar tal fato? Por que não vir em auxílio, em apoio a quem tenta desenvolver ciência, uma atividade que por si só já demanda um enorme gasto de tempo e esforço?! Tirar tempo do pesquisador com tarefas diversas da pesquisa vem em detrimento dos resultados de sua pesquisa.

2 – As autorizações e licenças são atos administrativos, dentre os quais se situam outorgas como a Carteira de Habilitação (CNH) para dirigir, Alvarás de funcionamento de estabelecimento, entre outros. Uma analogia que não nos parece escusada para o caso em tela, seria a exigência de relatórios anuais de todas as ruas e estradas percorridas pelos motoristas, incluindo motivo da viagem, etc. (CNH); ou quem sabe relatório de todos os clientes que estiveram em dado estabelecimento comercial para renovação do respectivo Alvará… Segundo consta, estamos em um Estado liberal, em que a liberdade de agir do indivíduo deve ser vista como um dos pilares da Sociedade. O Estado deve promover o desenvolvimento social e científico. Um excesso de exigências burocráticas acaba indo de encontro a esse desiderato. O controle excessivo do cidadão, das atividades, por seu turno, assinala Estados totalitários, direção que devemos evitar a todo custo. Não se há de olvidar que o Meio Ambiente é “bem de uso comum do povo” (Art. 225, caput, Constituição da República). Nesse sentido, aliado à conservação, nasce o direito ao seu uso (para a economia e habitação humanas), como para pesquisa também. Reitere-se que é bem de uso comum do povo e não propriedade estatal. Nesse sentido, há que se ponderar o excesso de controle do ente público com o direito de usufruir de um bem comum, sob pena de resvalarmos em totalitarismo estatal característicos de estados outros que não o nosso, definido como “(…) Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça (…)” (Preâmbulo da CR).

3 – Novamente lembraremos o fato do paradoxo das autorizações para desmatamento e outras formas de supressão da natureza original. Estas se revelam, amiúde, com menos exigências da sorte da qualidade do indivíduo (não há necessidade de doutorado, como no caso da licença para coleta, p. ex). No entanto, uma vez obtida, não há exigência de relatório detalhado de todos os táxons, dos milhares de seres vivos que foram exterminados definitivamente do local. Essa Biodiversidade local exterminada de uma só vez nunca será conhecida ou terá testemunho. Já o cientista, assoberbado com a burocracia exaustiva, cada vez mais poderá menos e assim, extingue-se a natureza nos locais em que é exterminada com autorização, como também os inventários e estudos de onde ainda existe em nosso país, mercê dos óbices impostos à pesquisa. Ou seja, estaremos na contramão do momento histórico que preconiza a conservação e o incremento do inventário da Biodiversidade do Brasil, país megadiverso por excelência.

Quanto ao aspecto prático do relatório, encontramos muitas dificuldades e problemas. Senão vejamos.

Quando se coleta uma amostra, geralmente isso significa que não sabemos a espécie ainda. A concepção atual do relatório parte de algumas premissas falsas, ou que pelo menos desafiam o espírito científico: (1): O pesquisador sabe os nomes científicos de todas as espécies que amostrou em campo, ou conseguiu determinar todas no prazo exigido de um ano. Embora o relatório ofereça a possibilidade de se preencher os táxons com nível de determinação mais baixo (por exemplo, até Família), tais dados, carecem de valor para o ICMBio, nem para a ciência enquanto a determinação não for concluída. (2): Toda coleta é georeferenciada usando GPS? Embora isto seja um padrão desejável, não há lei que torne isso obrigatório e nem todos os pesquisadores têm acesso ao equipamento. (3): A taxonomia das espécies é tida como fixa (!). Pelo menos para as plantas vasculares, os posicionamentos taxonômicos mudam quase semanalmente. Isso significa que não se pode selecionar de uma lista hierarquizada previamente estabelecida. A mesma espécie pode estar subordinada a outra família no ato do preenchimento. Ademais, o sistema de classificação adotado pelo SISBio é polêmico. A seleção dos táxons a partir de uma lista gera grandes problemas, pois não permite o preenchimento livre. Nem todos os gêneros botânicos coletados por um dos autores em campo constam da lista. Nesses casos, o pesquisador fica impedido de preencher os dados com a precisão total, mesmo que ele queira.

Outro grave problema surge quando se chega, e.g., na tela “Local x Táxons x Atividades x Destinos”. Esta não faculta a possibilidade de selecionar, de uma vez, todos os taxons já assinalados na tela “Taxons”, de modo que o pesquisador tem que selecionar, manualmente, para cada coleta, as datas de início e fim, destinação (herbário ou outro). No item quantidade, não há uma opção para designar, por exemplo, um ramo de uma árvore (só tem indivíduo, indivíduo amostrado, lote, quilograma, etc.) Quando o pesquisador, já exausto, chegar ao item “resultados/discussão”, que motivação ele terá para sugerir qualquer coisa?

Embora haja um discurso sobre as restrições do uso dos dados, o ICMBio não oferece real garantia de que os dados do pesquisador serão mantidos em sigilo suficiente até a eventual publicação (a propósito, quem disse que todos devem ser, obrigatoriamente, publicados?). Deixa de ser convincente a afirmação de que “Os dados de sua pesquisa não se tornarão públicos, da forma como foram informados no seu relatório. (…)”. Já que também é dito que: “(…) No entanto, eles poderão ser utilizados de forma consolidada, como, por exemplo, em estatísticas e mapas, a partir de uma mescla com dados provenientes de outras pesquisas, para gerar informações úteis ao planejamento e manejo de espécies, ecossistemas e unidades de conservação.” Resta indubitável que tais possibilidades implicam, automaticamente, na divulgação de dados sensíveis e ninguém conseguirá garantir o resguardo da autoria.

Embora, o mais consentâneo com a prática administrativa de outorga de licenças/autorizações e a vivência em estado liberal fosse a não-obrigatoriedade dos relatórios, parece óbvio que o sistema funcionaria melhor se o referido relatório tivesse formato livre. Nesse caso, alguns exemplos de preenchimento, com alguns dados básicos poderiam ser fornecidos. Dados de coleta poderiam ser preenchidos num documento de texto ou numa planilha Excel que seriam enviados como anexo. E os dados finais dependeriam de uma publicação efetiva (portanto, não tendo um prazo estabelecido). Desta forma, a partir de primeiro de janeiro de 2012, muitos pesquisadores não conseguirão renovar suas licenças para coleta de material biológico.

E a culpa não será deles, mas sim de um sistema completamente engessado que parte de premissas erradas. O preenchimento de 17 táxons leva uma hora, só conseguindo preencher dois deles no item “Local x Táxons x Atividades x Destinos”. Alguém já calculou o tempo necessário de preenchimento para quem coleta 500 amostras por ano? Por que penalizar dessa forma pessoas sérias, que realizam estudos importantes?

Eis algumas colocações de outros pesquisadores que foram avisados (por nós) sobre a exigência do relatório:

1- Luíz Flamarion, B. de Oliveira, Professor do Museu Nacional / UFRJ (MNRJ), Departamento de Vertebrados, Mastozoologia: “Estamos [o Museu Nacional] com uma carga de esqueletos de mamíferos reunidos pelas nossas andanças no Pantanal e que precisa ser transportada para o MNRJ. O Ibama de Cuiabá, no entanto, não autorizou o transporte, pois o Museu está com várias pendências no SISBio (inscrito como “importador ou exportador de fauna silvestre e exótica”, com dois relatórios anuais ainda não entregues). Essas pendências implicaram na não autorização para transporte do material. Estive no Ibama recentemente e vi que os itens acima citados realmente estão registrados e, segundo informações obtidas, impedem que o material seja liberado de Cuiabá para o Rio de Janeiro. O status do Museu teria que ser modificado da condição de “Uso de Recursos Naturais” e “importador ou exportador de fauna silvestre e exótica”. Não foi possível continuar os demais passos no site, pois possivelmente a senha esteja incorreta. (…) Um funcionário do Ibama me comunicou que, adicionalmente ao fato de o Museu Nacional estar como importador e exportador de produtos da biodiversidade, está quase em situação de receber uma multa enorme por isso. Assim vai a vida, nesse país feito aos pedaços e não conectado.”

2- Ricardo Moura, aluno de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Botânica do MNRJ: “Acho que a conversa pode ser estendida a outras licenças (estaduais e municipais). Continuo achando que deveria existir um único órgão para organizar e armazenar essa informação não tirando a autonomia de cada órgão em conceder as autorizações. Além de preencher todo site do SISBio tenho também que me reportar a cada órgão estadual por conta da tese. As secretarias de Minas e do Rio de Janeiro já me pediram uma cópia do relatório final, que no caso seria a tese. Acabo achando que faço mais mal ao meio ambiente do que bem (gasto de papel, tinta, etc.) além do custo financeiro disso. Se fosse tudo online….(tirando UC´s que não tem acesso a rede).”

3- Nílber Gonçalves da Silva, aluno de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Botânica do MNRJ: Para um trabalho de florística, se soubéssemos todas as respostas do questionário do SISBio, então não precisaríamos fazer o trabalho – já estaria pronto. Para espécies novas, e ainda há tantas a descobrir, como fazer isso se já temos que dizer de antemão que estamos indo descobrir espécies novas?

Talvez a luz no fim do túnel seja mais um projeto de lei (sic!) visando flexibilizar a legislação para estimular pesquisa científica e inovação tecnológica (p. ex.: JC e-mail 4347, de 20 de setembro de 2011). Mas quanto isso vai demorar?

Ruy José Válka Alves é professor Associado do Departamento de Botânica, Museu Nacional /UFRJ; (ruyvalka@yahoo.com). Hélcio Gil Santana é Doutorando em Biodiversidade e Saúde do Instituto Oswaldo Cruz – RJ; (helciogil@ioc.fiocruz.br). Olaf H. H. Mielke é professor Titular do Departamento de Zoologia da Universidade Federal do Paraná.

Fonte: Jornal da Ciência Email 4382, de 10 de Novembro de 2011